Votar sem vergonha

Artigo publicado em 07 de agosto de 2002

Jornal Estado de Minas

Seção Opinião, p. 9

Autor: Dr. Geraldo Magela S. Freire – OAB/MG 15.748 

 

            VOTAR SEM VERGONHA 

Geraldo Magela S. Freire

Advogado

Numa crônica do início do século XIX, ironiza o escritor a vergonha da elite da Corte nos salões do Rio, quando, sem saber usar os talheres, se amarelava diante do maitre  – geralmente um europeu analfabeto, mas vestido a caráter. Quando fui buscar minha filha em Bozman, nos EUA, que terminava o último ano do high school, no jantar de despedida, olhei para aquela quantidade de talheres, e, como sempre faço, sem nenhuma vergonha, olhei para minha mulher, recebendo como resposta  –  comece de fora para dentro. Lá aprendi a comer pizza com a mão e a trazer tudo que sobrava nos restaurantes, porque era assim o procedimento da família do magistrado que nos acolhia. Lá nada se esperdiça, nada se joga fora, especialmente comida e vinho, porque é bem essencial para os filhos do Tio Sam.

Em recente congresso da União Internacional de Juristas Católicos, realizado no Instituto Agostiniano, em Roma, só se fala em perdão da dívida externa dos países do Terceiro Mundo. A Europa conheceu a fome na Segunda Guerra Mundial (1939/1945). Agora, expressivas lideranças e juristas da Comunidade Européia resolveram adotar a bandeira da Igreja Católica, no Ano do Jubileu, ou seja, trabalhar pela erradicação da fome no mundo, priorizando o combate à dívida externa, a  fim de que os governos possam erradicá-la. Sem nenhuma vergonha.

Trocando idéia com alguns membros da delegação brasileira, as opiniões estavam entre o pacta sunt servanda  –  porque é uma vergonha dever e não pagar. Observei que ver o estado de miséria absoluta – vai o pleonasmo – dos miseráveis excluídos (adultos, velhos e crianças) debaixo das marquises e de legiões de brasileiros sofrendo a dor da fome seria vergonha maior. Por que não uma auditagem para apurar a manipulação dos números pela agiotagem internacional e ver o que é ou não o produto da corrupção? Ou continuaremos pagando quase os R$100 bilhões por ano de juros e taxas de serviço da dívida?

Agora, com as eleições presidencias, diante do crescimento da candidatura de um operário, as chamadas elites conservadoras se sentem diminuídas com a possibilidade de um operário, sem curso superior, que tem somente nove dedos, ser o Presidente do País. A vergonha é da classe – temos que fingir que esta não é a maioria da população. Preferem um branco, cabelos louros, olhos verdes, com um diploma em riste, poliglota e erudito. Nos aeroportos dos países do primeiro mundo, a maioria dos taxistas tem esse perfil. Então, aqui, seriam candidatos em potencial à presidente. Esquecem  que somos, segundo Darcy Ribeiro, resultado de uma “sociedade multiétnica.de matízes indígenas e africanas,.mas não vinculadas a lealdades étnicas próprias e disputantes de autonomia frente à nação. (in O Povo Brasileiro).”

Carateristica da democracia é a alternância do Poder e a rotatividade de mandatos. Com o que se evita que as “elites” permaneçam indefinidamente no poder, grudadas nas tetas do erário, amamentando-se, com a essência e principalmente com o supérfluo, legal ou ilegalmente, com todos os recursos produzidos pelo País, com o que impedem a legítima e desejada distribuição de renda. Como anota RAYMUNDO FAORO:  “O Poder – a soberania nominalmente popular – tem donos, que não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre…O Estado reduzido, nos seus conflitos, à conquista dos membros graduados de seu estado-maior.”  (Os Donos do Poder)

Vamos votar sem medo. Não importa se o candidato tem só nove dedos, se é moreno, mulato ou operário. Tem que haver alternância no poder.  Vamos dar um basta ao patrimonialismo. Quem governa é uma equipe. Nesta é que devemos estar de olho. Se a experiência não der certo, na próxima faremos outra. Tem mineiro aí que ainda não foi experimentado, tem boa genética paterna e materna.  Mas temos que tentar mudar este País, o que não foi conseguido pelos eruditos, sábios e técnicos, que falam uma linguagem dos donos do poder.  Como está ou sua continuação, no momento, é o assassinato da esperança. Felizmente, para nós, a esperança não morre nunca. Porque sem ela não vale apenas viver.

(Jornal Estado de Minas em 07 de agosto de 2002, Seção Opinião, p. 9)