Se bobear, a garantia dança A instalação de equipamentos, mesmo que seja realizada na rede autorizada de qualquer fabricante, pode gerar transtornos e prejuízos àqueles que pensam fazer ótimo negócio.
As fábricas são obrigadas a honrar a garantia de três meses prevista em lei. Muitos fabricantes dão um, dois, três e até cinco anos de cobertura total do veículo. Porém, a história é bem diferente nas entrelinhas e qualquer deslize passa a ser motivo para o fabricante escapulir do combinado. Foi o que aconteceu com o engenheiro Elson Cardoso Bessa Júnior, que, para baratear o seguro de sua picape Nissan Frontier, instalou um rastreador via satélite e até hoje vive um martírio para resolver a questão.
Rastreamento problemático
Quando foi fazer o seguro de sua Nissan Frontier 2010, pela Bradesco Seguradora, foram oferecidas ao engenheiro Elson Cardoso Bessa Júnior duas apólices: uma no valor de R$ 5,2 mil e outra de R$ 4,1 mil. A opção pela proposta mais em conta implicava na instalação de um rastreador via satélite na picape. Como a diferença era expressiva, Bessa Júnior equipou o veículo com o aparelho.
Tudo transcorreu normalmente até a madrugada do dia 11 de dezembro de 2010, quando a Frontier simplesmente parou no meio da estrada, no município de Atibaia, SP. A picape foi rebocada para a concessionária Misaki, na capital, na qual foi constatado que a pane havia ocorrido em virtude do corte de um chicote elétrico, necessário para a instalação do rastreador. Para a surpresa de Bessa Júnior, o orçamento para a realização dos reparos foi de cerca de R$ 2,3 mil, sob a alegação de que a picape havia perdido a garantia, pois o aparelho havia sido colocado fora da rede autorizada da marca. O que se seguiu foi um longo martírio para o proprietário, que está até hoje sem a caminhonete.
“Entrei em contato várias vezes com a seguradora para solicitar uma vistoria, mas os atendentes sempre diziam que esse procedimento só era feito em sinistros de acidentes, o que não era o caso”, explica Bessa Júnior. Ele procurou também a Pósitron, fabricante do rastreador, que chegou a enviar um técnico para analisar o veículo, em conjunto com representantes da Nissan, mas não houve solução para o problema. “A empresa falava que a responsabilidade era da Bradesco, que, por sua vez, dizia o mesmo em relação à Pósitron.”
HOMOLOGAÇÃO A prática de invalidar a garantia quando equipamentos elétricos ou eletrônicos são instalados fora da rede autorizada é habitual entre os fabricantes de veículos. Porém, existem acessórios homologados, como alarmes e aparelhos de som, que podem ser conectados ao carro nas concessionárias, sem qualquer implicação. Ocorre que os rastreadores ainda não são homologados pelas montadoras.
A reportagem entrou em contato com a Pósitron, sem se identificar, e também com a loja Frecar, que instalou o rastreador na picape. Ambas informaram que, para que o aparelho funcione, é preciso cortar o chicote elétrico. Assim sendo, restam apenas duas alternativas ao motorista que deseja o monitoramento via satélite: ou fica sem o serviço ou sem a garantia contratual.
RESPOSTAS Na semana passada, a Bradesco Seguros comunicou que arcaria com as despesas do conserto da picape. A Pósitron disse apenas que esclareceu o assunto com o proprietário. Bessa Júnior confirmou as informações, mas ressaltou que a solução por parte da companhia de seguros só veio depois do contato da reportagem: “Eles ligaram pedindo mil desculpas e até disponibilizaram um carro reserva, o que não havia sido oferecido até então”.
A Nissan reativará a garantia da picape, uma vez que o reparo será feito em concessionária da marca. Contudo, não deixou dúvidas quanto a sua posição em relação à instalação do rastreador e afirmou que “o uso de qualquer acessório não homologado pela fábrica da Nissan do Brasil gera perda de garantia”. A empresa comunicou ainda que não disponibiliza o aparelho, mas está estudando sua homologação.
Barato que pode sair caro
Som, alarme, vidros elétricos, travas nas portas, sensor de estacionamento. Depois de comprado o carro zero quilômetro, básico, quem nunca teve a tentação de instalar um desses acessórios? E, pior, depois de uma rápida pesquisa, descobriu-se que o acessório não original de fábrica é mais barato, aumentando a tentação de comprar um equipamento não original e instalá-lo fora de uma oficina autorizada. Se der tudo certo, é lucro, de fato. O problema é se ainda dentro do período de garantia do veículo surgir algum defeito que possa ter relação com esse acessório e/ou com sua instalação. Normalmente essa garantia é negada. Em alguns casos, ilegalmente; mas, em outros, nem judicialmente se resolve o dilema.
São quatro as situações possíveis. Na primeira hipótese — mais segura, mas provavelmente mais cara —, o consumidor compra um acessório original e o instala na concessionária. Neste caso, está resguardado para não perder a garantia do veículo, mesmo que o acessório venha a gerar algum problema que afete qualquer outro componente (principalmente nas situações que envolvem parte elétrica).
A pior das hipóteses é a compra de um acessório não original e a instalação feita fora da concessionária. Nessa situação, se o veículo vier a apresentar algum defeito que possa estar relacionado ao equipamento, ainda que aparentemente não haja relação, a garantia da fábrica será negada.
DILEMA Restam outras duas possibilidades, de análise mais complicada, do ponto de vista legal. A mais polêmica faz parte de uma das práticas mais arraigadas deste mercado: a venda e a instalação de acessórios não originais por concessionária autorizada. Neste caso, o consumidor se resguarda de alguma forma, mas as montadoras normalmente aludem a responsabilidade somente às concessionárias, o que aparentemente resolve o problema. Porém, se o veículo der problema e for levado a outra concessionária da mesma marca, que não a responsável pela instalação do produto (caso de viagem, por exemplo), o consumidor poderá ficar desamparado.
“A garantia é sustentada, desde que o problema não tenha relação com o acessório”, observa o gerente de pós-vendas da Citroën, Eduardo Grassioto. “Realmente é uma situação complicada. A princípio, perde-se a garantia, sim”, admite o engenheiro Carlos Henrique Ferreira, da Fiat Automóveis. “Mas é preciso usar o bom senso. O consumidor só perde se o componente afetado tiver a ver com o acessório”, pondera, lembrando uma das situações mais comuns, que são rádios não originais, que, mesmo desligados, consomem mais energia do que o especificado, reduzindo a vida útil da bateria.
Peugeot e Ford são mais enfáticas. “É a concessionária que garante, e não a marca, que já tem uma vasta gama de acessórios. Se a concessionária oferece outro, assume a responsabilidade”, enfatiza o coordenador de garantia da Peugeot, Fabrizio Cedran. “A concessionária tem que se responsabilizar pelo acessório que vendeu e instalou, e normalmente eles resolvem o problema”, completa o supervisor da garantia Ford, Ricardo Souza.
ORIGINAIS No caminho oposto, e bem menos comum, está a instalação de um acessório original, mas em loja não autorizada pelo fabricante. Por ser o acessório original, nestes casos muitas montadoras preservam a garantia do equipamento (Ford, GM, Renault, Citroën, VW e Nissan). Mas, se a instalação afetar algum outro componente do carro, novamente pode haver problema. As condutas divergem.
“A garantia do acessório é de um ano, mas não garanto a instalação”, continua Ricardo Souza, da Ford. “A Access é um braço da Honda só para o desenvolvimento de acessórios, que são de acordo com o projeto original do carro. E treinamos os concessionários para fazer a instalação. Então a recomendação da marca é que seja instalado o acessório original e na concessionária”, enfatiza o engenheiro do Departamento de Relações Institucionais da Honda, Alfredo Guedes, reforçando que só assim não se perde a garantia. “Deve-se seguir ao pé da letra tudo o que consta no manual do proprietário”, recomenda.
“Não há complexidade na instalação de nossos acessórios originais. Não me recordo de nenhum caso em que tenha havido problemas com instalação. Então acho que em tal situação a responsabilidade recairia sobre a montadora, pois não teria como diferenciar se o defeito é do equipamento ou da instalação. É muito difícil um erro de manipulação”, pondera novamente Eduardo Grassioto, da Citroën.
LEI Antes de entrar nas especificidades das hipóteses levantadas acima, o advogado Gustavo Americano Freire, especialista em defesa do consumidor, informa que a montadora não pode negar a garantia do veículo como um todo, se não houver modificação estrutural. “Um som não modifica o carro na sua estrutura, mesmo que se mexa no chicote; ao contrário de colocar um turbo, que modifica o motor, que é uma peça estrutural do carro, aí, sim, pode-se perder a garantia”, explica. Com isso, ele desmistifica a ideia de que a instalação de qualquer acessório acarretaria a perda de garantia do veículo. “O consumidor não pode perder toda a garantia do carro. Isso é totalmente abusivo e essa posição já está sedimentada pelos tribunais. Só se o defeito estiver relacionado com o equipamento instalado”, afirma. O problema é provar se o defeito está (ou não) relacionado ao acessório instalado, o que exige uma perícia, normalmente cara. Analisando as situações questionadas, Gustavo confirma que quando o acessório é instalado dentro da concessionária, mas não é original, quem tem que arcar é a revenda e não a montadora. “Não há que se falar em responsabilidade solidária nesses casos porque a montadora não contribuiu para a prestação do serviço. Quem instalou foi a concessionária e ela que tem que arcar”, diz. Na situação oposta – acessório original, fora da concessionária – é preciso saber o que ocasionou o defeito: se for do equipamento, a montadora terá que arcar; se for da instalação, é um vício do prestador do serviço e o fabricante não tem como ser responsabilizado.