O processo que dois irmãos cariocas movem na Justiça pelo direito a parte da fortuna do fundador da rede de joalherias H. Stern colocou em evidência a disputa travada por duas correntes de interpretação pela hegemonia no direito familiar brasileiro: uma diz que em casos de sucessão, prevelece a paternidade socioafetiva. A outra, a biológica.
Depois de exame de DNA, Nelson, 54, e Milton Rezende Duarte, 52, descobriram ser filhos de Hans Stern, fundador da joalheria, morto em 2007. A pista surgiu de depoimento da mãe, que logo após a morte do fundador da H. Stern, disse a Milton ter certeza que o irmão dele era filho do empresário. O objetivo deles, agora, é obter na Justiça o reconhecimento da paternidade biológica, o que, segundo seu advogado Flavio Zveiter, garantiria o direito à herança.
Para os advogados do escritório Andrade & Fichtner, que representa a H. Stern, o pedido é injustificado. Dizem que o entendimento majoritário na Justiça brasileira é que a paternidade socioafetiva deve prevalecer sobre a biológica justamente para evitar demandas de cunho unicamente patrimonial.
Na avaliação dos advogados, o exame de DNA não pode autorizar a mudança no registro de nascimento, dada a relação de afeto entre o filho e o responsável por sua criação. “Apesar de o filho ter o direito de conhecer a sua verdade biológica, o mero exame de sangue não pode prevalecer sobre o vínculo afetivo, em desrespeito aos cuidados e amor recebidos de seu pai registral”, dizem os advogados.
Para respaldar esse entendimento, elencaram decisões em que a Justiça negou o direito à herança aos filhos criados por pais socioafetivos. Uma delas, tomada pela 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, diz que “a comprovação da filiação sócio-afetiva entre o investigante e seu pai registral afasta a possibilidade de alteração do assento de nascimento do apelante, bem como qualquer pretensão de cunho patrimonial”.
Zveiter, porém, contesta a jurisprudência apresentada pela H. Stern. Segundo o defensor dos irmãos, as situações são diferentes. Nos julgados apresentados pela rede de joalherias os filhos sabiam quem era o pai biológico e pleitearam a herança anos depois de terem ciência da paternidade biológica. Nesse caso, diz Zveiter, eles optaram por manter a filiação ao pai registral.
Já no caso da H. Stern, Zveiter diz que seus clientes cresceram sem saber quem era o verdadeiro pai biológico. “A tese [da H. Stern] não se aplica. Estão argumentando como se os dois irmãos soubessem que o Hans era o pai deles”, afirmou.
Ele citou jurisprudência do STJ para fundamentar sua tese. “A decadência não atinge o direito do filho que pleiteie a investigação da paternidade e a anulação do registro com base na falsidade deste”, diz decisão do tribunal de 2010.
Especialistas consultados pela ConJur disseram que a questão é polêmica. Segundo a advogada Alessandra Rugai Bastos, ainda não há um entendimento consolidado em torno da questão. “De maneira geral, o vínculo socioafetivo tem que ser analisado. Há casos em que o patrimônio familiar vai ser compartilhado com pessoas que não participaram da evolução desse patrimônio. Entretanto, muitas vezes há crianças sem vínculo socioafetivo porque o pai não se propôs a fazer o reconhecimento”, ponderou.
Já para Regina Beatriz Tavares da Silva, doutora em direito civil e da família pela USP, os irmãos têm direito à herança. “O reconhecimento da paternidade é imprescritível e gera os mesmos direitos para todos os filhos, independente de serem gerados dentro ou fora do casamento”, afirmou.
Conforme explicou Regina, a legislação determina que 50% da herança deve ser dividia entre os herdeiros legítimos, o que, segundo ela, inclui todos os filhos do genitor. Os outros 50% são de uso livre pelo autor do testamento. Como Hans Stern teve quatro filhos de seu casamento mais os dois irmãos que pleiteiam o reconhecimento na Justiça, pode ocorrer que 50% da herança dele seja divida entre os seis filhos. Dessa forma, juntos, Nelson e Milton podem ficar com um sexto de toda a herança do fundador da H. Stern.
Elton Bezerra é repórter da revista Consultor Jurídico.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 19 de setembro de 2012