O Dr. Bruno Rezende, advogado da Silva Freire, prestou esclarecimentos em entrevista ao Jornal Estado de Minas para a série «A dor da intolerância», que retrata o preconceito em nosso país.
Os pratos, copos e talheres não eram os mesmos usados pela família contratante do serviço. Sentar no sofá também era algo restrito aos brancos. Se algo saísse errado, a culpa só podia ser da raça. «Era como se fizesse um trabalho sujo por ser negra», desabafa Fernanda Marinho. O relato, que pode parecer algo do século 18, ocorreu há poucos anos, em pleno século 21. E ainda que muitos brasileiros teimem em dizer que isso não existe no Brasil, o preconceito vivenciado por Fernanda e outros ouvidos para essa reportagem ocorreram e ocorrem no mestiço solo brasileiro, todos os dias, a toda hora. De acordo com os desabafos, o racismo é ainda mais cruel no mercado de trabalho. E não é algo exclusivo de alguma área: está em todas as profissões e é cometido por muitos, independente da classe social.
«As pessoas não julgam você por sua competência, mas por sua cor. E aqui no Brasil isso é pior», decreta Fernanda. A comparação com outros países é lembrada depois que o volante do Cruzeiro, Tinga, foi xingado de macaco durante uma partida de futebol no Peru, em fevereiro. Os brasileiros se revoltaram e até criaram campanhas a favor do jogador. «Como o racismo é velado por aqui, há uma certa hipocrisia nessa história. Somos xingados lá fora, mas se olharmos para cá, veremos que as coisas são piores. E por que temos que ser respeitados no exterior se na nossa pátria esse respeito não existe?», questiona Fernanda. E ela tem razão.
Na semana passada, mais uma vez o futebol foi palco para a intolerância. Na quarta-feira, o árbitro Márcio Chagas da Silva foi vítima da discriminação durante uma partida do Campeonato Gaúcho. Torcedores o xingaram de macaco e chegaram a colocar banana sobre seu carro. No mesmo dia, o voltante do Santos, Arouca, foi insultado por ser negro durante o Campeonato Paulista.
Em Minas Gerais, a cada 60 horas uma ocorrência de racismo é registrada pela polícia. Somente no ano passado, foram 147 denúncias, que, segundo autoridades, é um número considerado baixo, já que a maioria das vítimas não denuncia por vergonha e por acreditar na impunidade do agressor. E quando o preconceito ocorre durante o expediente, a queixa é ainda menor, já que muitos temem perder o emprego. Segundo explica o advogado Bruno Rezende, o mercado de trabalho é um local-chave para que o crime ocorra. «Nessa área, as pessoas às vezes perdem o emprego ou até mesmo uma promoção por causa desse preconceito», diz. Ele explica que existe o racismo e a injúria racial. «O primeiro é a lesão ao princípio da dignidade da pessoa humana. Já a injúria é a lesão na honra subjetiva da vítima», compara.
Ele cita como exemplo de racismo o fato de uma pessoa ser impedida de entrar no mercado de trabalho. É o caso da australiana que se negou a ser atendida por uma manicure negra em Brasília, em fevereiro. Como injúria, Bruno esclarece se tratar de uma ofensa que passa a ser verbal, como foi o caso do Tinga. «O crime de racismo não prescreve e não é passível de fiança. Já a injúria, o acusado pode responder em liberdade desde que pague fiança», esclarece. De acordo com estudo feito em 2013 pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a média salarial da população negra é 36% menor que a de outras etnias. O dado é indiferente à escolaridade, profissão e região, e abrange cidades como São Paulo e Região Metropolitana de BH.
«Nos últimos anos, verificou-se um aumento da população negra no quadro dos economicamente ativos. Porém, ao avaliar os postos de trabalho e as profissões em que esse aumento foi identificado, perceberemos que não houve crescimento significativo do negro em cargos de chefia ou em profissões que historicamente foram ocupadas pelos não negros», comenta Rosângela da Silva, coordenadora de Promoção da Igualdade Racial da Prefeitura de Belo Horizonte. Ela ressalta que, nos últimos anos, houve um aumento no nível de escolaridade dessa população. «No entanto, ainda não vivenciamos, de fato, melhorias nos postos de trabalho e nas relações étnico-raciais».
A discriminação racial é considerada crime no Brasil e, no caso de uma ação criminal, é de titularidade do Ministério Público. «Se for comprovado o racismo, a pessoa que cometeu pode pegar pena de um a cinco anos de reclusão e multa. Já no caso de injúria, será de um ano a três anos de reclusão e multa», comenta o advogado Bruno Rezende, que diz que o primeiro passo nesse caso é ter testemunhas e registrar um boletim de ocorrência. «O boletim policial é uma versão da vítima, ele é importante, mas é o início de uma prova», avisa a juíza Adriana Goulart de Sena Orsini.
Em novembro de 2013, foi criado em BH o Núcleo de Atendimento à Vítimas de Crimes Raciais e de Intolerância (Navicradi). De acordo com a delegada Margaret de Freitas Assis Rocha, como é algo novo, as pessoas não conhecem muito. «Em janeiro, tivemos cinco casos de injúria racial, fizemos boletim e depois encaminhamos para a delegacia para o procedimento. No núcleo há uma acolhimento à vítima, mas percebemos que há muita vergonha em denunciar. O papel do núcleo é monitorar a ocorrência. Hoje em dia, há injúrias na internet que servem como prova, seja um e-mail, seja uma publicação na rede social. Se não houver provas, não tem como abrir um inquérito policial», avisa a delegada.
Fonte: A dor da intolerância, série do Jornal Estado de Minas, edição de 09/03/2014.