Artigo publicado em 31 de outubro de 2002
Jornal Estado de Minas
Seção Opinião, p. 7
Autor: Dr. Geraldo Magela S. Freire – OAB/MG 15.748
Um novo alvorecer
Geraldo Magela S. Freire
Advogado
O dono da fábrica administrou-a por 500 anos, produziu miséria e uma exclusão social africana. São 50 milhões passando fome, vivendo abaixo da linha da pobreza. Uma iniqüidade social sem precedentes, inaceitável. A opulência da Casa Grande foi construída sobre as dores da senzala. Então, nós entregamos a fábrica ao operário. Foi a maior revolução já feita no Brasil em cinco séculos. A miscigenação de raças não produz agora somente samba, feijoada e mulatas. Produz presidente também. A avenida que leva ao poder, com todos seus contornos e detalhes traçados pela oligarquia dominante durante todo esse tempo, nunca mais será a mesma.
Quebrou-se o maior preconceito existente no País, porque “somos uma república mestiça étnica e culturalmente” (José Honório Rodrigues). Tenazmente combatido e estigmatizado pela elite dominante, em três eleições anteriores, que jamais aceitou que um torneiro mecânico, com apenas a 5ª série primária, mas formado na universidade da vida, no trabalho humilde, digno e honrado, fosse o chefe de todos nós e exercer a suprema magistratura da nação. As elites dominantes sempre arranjam um doutor, na realidade uma marionete, entregando-lhe o poder formal, enquanto elas ficavam com as tetas do erário. Por que fizemos isso?
Por que não estamos satisfeitos com o Brasil que herdamos, de miséria e exclusão, com o maior grau de concentração de renda do mundo, e queremos construir uma sociedade justa um Brasil-nação, que não seja um entreposto comercial para enriquecer a metrópole colonialista, que impõe permanente dependência. Porque nosso coração cristão sangra de tristeza, vendo nossos irmãos sem pão na mesa para seus filhos, num país rico em tudo, mas pagando 100 bilhões de juros por ano a uma dúzia de especuladores internacionais.
O Papa Leão XIII, chamado o Papa dos operários, porque foi o primeiro a reconhecer o direito de os trabalhadores se filiarem a sindicatos, caraterizando seu papado sobre o social, sustentou que a primazia é do trabalho e não do capital (Rerum Novarum, de 15/5/1891). Era também antiescravagista, porque sua Encíclica In Plurimus, escrita especialmente para o Brasil, a pedido de Joaquim Nabuco, líder abolicionista brasileiro, data de 5/5/1888. Oito dias depois, Isabel, a Redentora, promulgava a Lei Áurea.
Você deixaria de comprar feijão para seus filhos para poder pagar as prestações que deve ao banco, ou você pagaria com o que sobrasse ou renegociaria? Como se sentir feliz cercado pela miséria, especialmente pelas crianças abandonadas, ao redor de sua casa, do seu trabalho, nas ruas, por todos os lados? Como esperar um ato de amor de quem vive faminto debaixo das marquises e dos viadutos? Lembra-se do que disse Alceu Amoroso Lima: “Diante de tanta pobreza, a riqueza e a alegria de poucos chegam a ser uma profanação”.
A prioridade número um de seu programa de governo é a miséria absoluta, ou seja, matar a fome de 50 milhões de miseráveis. O Lula não vai conseguir isso sozinho. Ele precisa do esforço e sacrifício de cada um, porque a vida comunitária exige a solidariedade de todos, porque todos somos responsáveis pelo resgate da dignidade dos desprotegidos. E toda a sociedade tem que se mobilizar para erradicar a pobreza. Será uma covardia exigir, como já estão fazendo os ex-donos do poder, que ele resolva tudo de uma só vez, porque isso é prever a derrota antes de começar a batalha. Porque foram 500 anos de exclusão, de negação dos direitos humanos básicos de sobrevivência, comida, saúde, emprego, resultando numa criminalidade sem precedentes. Vamos para a prioridade número um, matar a fome. O resto podemos esperar, com desenvolvimento de cunho social, conscientização e organização popular, mas colaborando com todas nossas forças. “O Brasil tem tudo para dar certo como nação, com projeto autônomo e articulado com o processo de globalização”, na linguagem de Leonardo Boff.
Do coração do cristão jorra sempre a esperança. E sonhar com um novo alvorecer é preciso.
(Jornal Estado de Minas em 31 de outubro de 2002, Seção Opinião, p. 11)